segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

FITAS VERDES X FITAS VERMELHAS


Era o ano de 1969. Eu cursava a terceira série do antigo Curso Primário e era uma das primeiras alunas da classe. Minha jovem professora, de vez em quando, nos surpreendia com uma inovação pedagógica. Daquela vez, anunciou que faria um debate. Quando ela explicou o que era um debate, a turma ficou entusiasmada, mas logo veio a decepção: nossos opositores seriam os alunos da quinta série. Ficamos amedrontados; um aluno mais atrevido argumentou que eram duas séries de diferença; outro vaticinou que seríamos massacrados pelos sabichões. Não adiantou. Tivemos de aceitar porque – naquele tempo – aluno não discutia as determinações do professor, apenas obedecia. O assunto do debate seria a primeira viagem do homem à Lua. Isso, segundo a professora, nos colocava em pé de igualdade com os alunos da quinta série; todos teriam que buscar informações do mesmo modo. Para piorar, o local escolhido foi a sala de nossos oponentes. A professora nos deu oito dias para nos prepararmos, o tempo de duração da viagem espacial, e mais vinte e quatro horas para lermos os jornais do dia seguinte. Portanto, a contagem regressiva começou no dia dezesseis de julho, quando a nave partiu da plataforma de lançamento do Kennedy Space Center, no estado da Flórida e só terminaria um dia após a aterrissagem da Apolo 11.
Naqueles dias, a escola inteira ficou agitada porque, além de nós, outras turmas fariam debates. Foram dias de angústia para mim que, nos intervalos, assistia às discussões de meus colegas, tolhida pela timidez, sem coragem de participar da conversa. Eles sabiam um monte de coisas e pronunciavam com desenvoltura os nomes esquisitos dos astronautas americanos: Armstrong, Collins, e Andrews. Aquela língua difícil e enrolada era um tal de inglês. Não tinha coragem de confessar que em minha casa não havia jornais, nem revistas e muito menos televisão, um luxo acessível apenas a alguns alunos privilegiados. Possuíamos apenas um rádio antigo e pesadão. Era o velhote que me transmitia músicas, novelas, contos de fadas e recortes do mundo real – estes sempre complicados demais para mim. E era ele que, entre um pipoco e outro, bradava em meus ouvidos aquelas palavras estranhas e belas: astronauta, espaço sideral, módulo lunar, espaçonave, força gravitacional, estratosfera... Apolo 11. Eu ficava a repeti-las, fascinada pela sonoridade e pelo significado que apenas lhes adivinhava.
No dia vinte, um locutor amalucado anunciou que a Lua fora conquistada pelos americanos; os russos haviam sido derrotados na corrida espacial, e a balança da Guerra Fria (Sei lá o que era.) pendia a favor dos norte-americanos; no “solo lunar”, tremulava uma bandeira azul, vermelha e branca.
Fiquei boba com essa notícia; nada daquilo fazia sentido para mim. A lua não era mais de São Jorge! Os americanos haviam derrotado o santo guerreiro! E agora, onde andaria o valente espadachim, expulso de seus domínios? Estaria cavalgando à toa pelo céu? E os dragões para onde iriam? Claro que a professora já havia explicado um monte de coisas sobre a lua: a Lua é satélite da terra; um corpo celeste sem luz própria (Que absurdo!) que reflete a luz do sol em sua superfície como um espelho; seu solo é um deserto, cheio de buracos e de crateras enormes... e não possui nada além disso. Tomei nota de tudo, li e decorei, mas não fiquei convencida. A lua, para mim, era algo bem diferente.
Nasci na roça e ali aprendi a contemplar a lua, a admirar sua beleza e a respeitá-la como algo sagrado, um pedaço do céu, uma possessão de Nosso Senhor Jesus Cristo que ele cedeu a São Jorge depois que o cavaleiro matou o Dragão de Sete Cabeças. Além de ser a morada do santo guerreiro e dos dragões, para o povo da roça a lua significava muitas outras coisas: a lua cheia era noite de lobisomem, noite de cantoria e de contação de histórias; a lua nova indicava que era chegada a hora dos nascimentos, hora de plantar o milho e o feijão; a lua crescente era propícia para cortar cabelo, deitar galinhas, arrancar mandioca; a lua minguante significava resguardo, cautela. Nessa lua, todos tinham receio de cortar cabelo, fazer plantação ou mesmo casar-se. Para as crianças como eu, a lua era uma companheira de brinquedos. Perdi a conta de quantas vezes apostamos corrida para ver quem chegava primeiro ao pé de baraúnas: as crianças na estradinha de chão, montadas no cavalo-de-pau; a lua no alto, montada nas nuvens. Ela sempre vencia a corrida, mas isso não importava porque o bom era voarmos juntos; ela no céu, e nós na imaginação.
No “Dia D” cheguei a simular um mal-estar para filar a aula (pela primeira vez). Porém, no ultimo instante, resolvi participar. Cheguei atrasada e tive que aterrissarar no território inimigo: a sala da quinta série..
Quando entrei, as tropas estavam enfileiradas frente a frente, separadas pela mesa das professoras e pelas cores das fitas no pescoço: a terceira série com as fitas verdes e a quinta série com as vermelhas. Recebi da professora um sorriso apressado, a título de incentivo, e uma fita verde. Sentei-me no fundo – quietinha – com as pernas tremendo e o estômago embrulhado.
O combate não demorou a começar.
Ao sinal do apito da professora, os alunos começaram a se engalfinhar fazendo e respondendo perguntas; cada qual mais preparado; alguns municiados com fotos recortadas de jornais e revistas; outros descrevendo as cenas incríveis vistas na televisão. As mestras, empunhando suas canetas letais, anotavam a participação de cada aluno. Eu, no meio do grupinho mudo, percebia o olhar inquisidor de minha professora a exigir minha participação.
Na verdade, sabia a resposta de algumas perguntas; o que me faltava era coragem para me levantar e responder: “Deram o nome de Mar da Tranqüilidade ; Foi no Oceano Pacífico; Houve um atraso de trinta segundos; Pousou às doze horas e cinqüenta e seis minutos...”
No final, os fitas vermelhas venceram e ficaram comemorando na sala, enquanto os fitas verdes saiam reclamando da superioridade do adversário: duas séries à frente e maior poder aquisitivo dos filhinhos-de-papai que possuíam tevê e compravam revistas. No grupo dos verdes, só alguns assistiam “televisinho”; a maioria não conhecia o caro e fascinante aparelho que, na definição de meu pai, era “um rádio com uma tela brilhosa mostrando fotografias em movimento”.
No rabo da fila, saí de cabeça baixa, mas a professora me chamou e me  esculachou de tabaroa e bicho do mato. Será que não lera um jornal ou uma revista? Era impossível que nada soubesse sobre a viagem do homem à Lua! Aquilo era muita falta de interesse! Por fim, anunciou o esperado e temido veredicto: NOTA ZERO.
Com essa nota “manchando” meu currículo, achei que a possibilidade de pular a quarta série e passar direto para a quinta, conforme a diretora havia conversado com meus pais, havia virado um sonho distante.
Porém a tal nota ruim misturou-se às outras, e aquele ano letivo teve um final feliz: fui aprovada para a quinta série junto com outros quatro colegas.

                                                                       (maio de 2008)