terça-feira, 22 de maio de 2012

DISCURSO DE FORMATURA

Discurso da Oradora
Lua Marina Moreira Guimarães
Direito UEFS 2011.2

Magnífico Reitor da UEFS, Prof. José Carlos Barreto de Santana, em nome de quem cumprimento todos os demais membros da mesa; professores homenageados; pais, mães, familiares, amigos, companheiras, e a todas e todos os presentes, boa noite.
Estou aqui hoje porque a palavra me foi entregue. Nesse instante, tenho a tarefa de proferi-la, enquanto estudante de Direito e mulher. Eu sou a primeira mulher a ocupar este lugar na qualidade de oradora de uma turma de Direito. Mas eu só posso fazê-lo na condição de poeta, que não escreve poemas, mas compreende que é preciso estar constantemente dominada pela paixão, e que a linguagem mais compreensível às pessoas é a que lhes atinge direto no diafragma, sem intermédio de sinapses. A poesia transmite valores porque transmite emoções. Ela é essencialmente marginal, e também sofre a exclusão, como tudo que é inútil ao mecanismo da produção de riquezas. É assim que me revisto da mágica encantatória de fazedora de palavras, para em prosa mesmo, recitar os versos dos meus companheiros e companheiras. E para trazer as boas novas: seremos humanos.
Há tanta solidão por aí, tantos sonhos desfeitos, ausência de sentido e de alternativa para esse modo de vida desagregador, que nos sentimos encurralados, e a reação possível é quedar-se atônito. Não podemos escapar à angústia do tédio e da fluidez das relações. Para onde nos movimentamos? O futuro melhor é uma metáfora, os ideais de igualdade, liberdade e justiça foram profanados e falar deles é obsceno.
Então, o que nos espera? É muito difícil viver na desesperança. É preciso acreditar no que não existe, afinal, estar nesse mundo é conviver com ausências. A ausência é o desconforto, é o vazio deixado
por uma presença ressentida. Não podemos deixar de sentir essa angústia fundamental, de saber que há muito mais lá fora do que nossos olhos conseguem captar nesse momento. Não estamos cegos, é que os olhos não chegam para dar conta dos problemas reais. Precisamos recuperar a dignidade dos outros sentidos no aprendizado da vida. Abrir os ouvidos, o nariz, a língua, o corpo, ao arrepio da experiência é o começo da libertação da clausura da modernidade. É aceitar a emoção, o sentimento, como parte fundamental da compreensão de nós mesmos e do outro.
Ausente é tudo que não está aqui, que não é agora, que não mora, que não possui, e que não morre. Havemos de desvelar as ausências do Direito, e a sua inescapável qualidade de incompletude, como tudo em nosso tempo.
Muitos preferem acreditar que o Direito é um todo hermético. Sua influência, imagina-se, afeta todos os aspectos da vida humana, nos governa onipresentemente, e as suas soluções poderiam resolver todos os problemas. Mas o que há, de fato, é um sistema que regulamenta algumas situações, um conjunto de elementos normativos que tenta prever apenas alguns fatos, e dar uma resposta possível aos conflitos.
Há muito mais acontecendo à nossa volta do que o Direito jamais será capaz de dar conta. E nem é desejável que consiga. Para além do controle jurídico, as pessoas criam outras maneiras de organização e de convivência, que o nosso dogmatismo, o estreito molde em que as leis e os litígios são criados, não tem condições de compreender. E são nesses lugares, em que o Direito é comumente tão prescindível, onde surge a novidade e a esperança.
O Direito parece ser o lugar das ausências. As formas de vida resistentes ao avanço do retrocesso do projeto hegemônico de mundo, estão ausentes, não conseguem se fazer ouvir dentro do mundo
jurídico, pois a língua que falamos não lhes é acessível. Na voz que profere o Direito, não ouvimos o grito dos miseráveis, dos sujeitos organizados para resistir às várias formas de opressão; não percebemos o vigor das enxadas sulcando a terra seca, tão seca como desde 1982 não se via; não sentimos a respiração entrecortada das mulheres que abortam em risco de morte; ou a mãe periférica que pranteia o extermínio de seu menino que nem chegou a ser homem; não podemos ver os confrontos em que a sociedade se sustenta e estremece, e para cuja pacificação, as leis dizem ser feitas.
Precisamos ter em mente que nosso trabalho não é a mola do mundo, mas o poder conferido pelo domínio desse instrumento não é fictício. O Direito é a linguagem do poder político e reflete os objetivos e a conduta de quem são seus detentores. Nós não somos os donos do poder, nem tampouco devemos ser as engrenagens que garantem obedientemente sua reprodução. Devemos ser os operários da rebeldia, e dia-a-dia executar a jornada da revolta contra a dominação.
É preciso resistir às decisões jurídicas supostamente neutras, reconhecer o conteúdo político e valorativo dos nossos atos. É preciso resistir às práticas solidárias, cujo intento é manter a dependência dos sujeitos e grupos oprimidos. É preciso humanizar o Direito, retirá-lo de seu sonho de segurança jurídica para que escute os gritos detrás dos muros. O Direito exclui, a educação jurídica exclui, o poder exclui a riqueza da vida humana. Cria um ambiente acético, onde nós, futuros profissionais, devemos nos movimentar. Mas nós não somos estéreis, e se sabemos onde está a corrente da mudança, é para lá que devemos migrar. Vamos lavrar e semear na aridez dos cubículos normativos, vamos fazer chover a esperança com a nossa utopia.
Que não sejamos homens partidos, que estejamos inteiramente aqui, com nossas lonas pretas e indignação fundamental, para a ocupação da universidade. Inteiros para a construção de uma educação jurídica capaz de produzir presenças e não mais escamotear ausências. É preciso reconhecer os vazios históricos e transbordá-los de novidades. É preciso entranhar, pela pedra, a vontade do corpo, da alma, do coração, porque essa é a matéria humana.
Esse encontro nosso, durante esses cinco anos, essas pessoas, neste lugar, neste tempo, foi importante para que acreditássemos que, sim, o aprendizado dogmático do Direito é necessário, mas o aprendizado amoroso do Direito pode ser revolucionário. O amor como a desrazão que leva à transgressão, o amor que nos faz recuperar a visão, tomada pela cegueira leitosa das crenças do racionalismo. Talvez, melhor e mais importante do que o exercício competente da profissão, seja o trabalho poético do exercício apaixonado da profissão. Como não ver, por exemplo, a poesia no trabalho do juiz que manda soltar o ladrão das melancias, recusando-se a justificar seu ato, pela obviedade do sentimento de compreensão do desespero faminto do homem. E vejam a poesia do jurista Warat, que viveu sempre em estado de ardente emoção, “Só os apaixonados contestam, protestam, procuram a transformação. As paixões não cegam; elas iluminam, utopicamente, o destino do ser apaixonado. A paixão é o alimento da liberdade. Não pode, portanto, existir pragmática da singularidade humana, sem seres apaixonados que a realizem. A paixão é o que nos diferencia dos seres inanimados, que simulam viver olhando, indiferentemente, o mundo à espera da morte. Só os seres apaixonados têm condições de procurar viver em liberdade...”
A ausência de paixão nos lança no vazio da mera sobrevivência material, do abandono do espírito. No centro da pragmática rotina institucional, oficial, judicial, dos rituais, dos favores, da repetição, da frieza, do torpor, experimentamos uma existência prosaica e, portanto pobre. Uma existência poética, pelo contrário, é aceitar viver para viver, é estar presente nos espaços para queimar o tédio e a conformidade, e com as cinzas das horas, dar origem à estrela da manhã. Sem isso, estaremos perdidos na mesmice.
Como Drummond, “Estou presa à vida e olho meus companheiros./ Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.” Precisamos é de paixão, companheiros, de fogo no olho, corpo em carne viva de tanto debater-se pela liberdade, e na luta para seduzir os outros para essa tarefa comum.
Eduardo Galeano é quem conta uma história sobre fogo. Diz ele que:
“Um homem conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana.
E disse que somos um mar de fogueirinhas.
- O mundo é isso – revelou. – Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras.
Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores.
Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas.
Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam, mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto, pega fogo.”
Olho para nós, formandos do curso de Direito, e vejo um bocado de fogueirinhas, e estão vivendo em meu peito. Espero que sejamos para sempre fogos de alumiar com ternura e queimar com ardor, pra que quem for à lua, possa ver nosso brilho de lá.

Obrigada.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

FILHA DIPLOMADA: HOMENAGEM A UM SERTANEJO



Hoje é dia 17 de maio de 2012. Contagem regressiva: faltam dois dias para a colação de grau de minha filha Lua Marina . A família Rosa Moreira está se preparando para uma grande festa com roupa de seda, terno preto e banda de música. É justo que seja assim: ela será a segunda (a primeira sou eu) a concluir a graduação de nível superior. Receberá o diploma do curso de Direito da UEFS. Será advogada, “doutora adevogada” como diria meu pai, Plinio da Matinha. É dele que quero falar nesse texto.
Meu pai, se fosse vivo, estaria cheio de orgulho da formatura dessa neta e se sentiria recompensado por sua decisão de mudar-se do campo para a cidade, a fim de “dar estudo” aos filhos mais novos. Há quarenta e sete anos, ele e minha mãe deixaram a fazenda Matinha, grande e bem cuidada, e migraram para a cidade de Santo Estevão, a uns duzentos e poucos quilômetros de Salvador, com o sonho de ver a família progredir através das letras. Matriculou a filharada na escola e descansou o coração. Muitos Moreiras desviaram-se do caminho, mas alguns estão retornando, e outros ( netos e bisnetos) estão em faculdades ou começando os estudos. Vem muito doutor Moreira por aí, como seu Plínio sonhou.
Criei minha filha falando desse avô sertanejo, que ela não chegou a conhecer, mas de quem tem uma imagem forjada a partir de minhas contações de histórias da família. Aprendeu a admirar o homem que começou a vida como tropeiro, aos doze anos de idade, vendendo farinha no lombo do burro por todo o recôncavo baiano, até tornar-se proprietário de uma grande fazenda e próspero criador de gado. Ainda ontem, à noite, eu lhe contei de suas andanças pelos Gerais onde comprava gado: Numa madrugada, ele partia dirigindo o Jeep verde e, numa tarde, depois de trinta dias ou mais de ausência, ouvíamos a buzina do carro e começávamos a gritar “Pai evenhe, pai evenhe ...” até que  avistávamos o bravo jeepinho – agora vermelho – coberto de poeira das terras do Sertão Alto. Dele, saltava o motorista queimado de sol - marrom avermelhado dos pés ao chapéu panamá – os braços abertos, os olhos cheios de lonjuras e a voz rouca de causos que contaria na beira da fogueira. Alguns dias depois, o som do berrante anunciava a chegada da boiada, e meu pai corria para o avarandado com os olhos brilhando. Não demorava muito, avistávamos uma nuvem de poeira e, dali a pouco, um mundaréu de bichos invadia a malhada, e a fazenda se enchia de sons e de cheiros. Os homens encourados arranchavam na malhada, acendiam a fogueira e passavam a noite relatando ao patrão os percalços da viagem entremeados de histórias de assombração.
 Dessas viagens, trago na lembrança, nomes e imagens de terras longínquas onde nunca estive e um Sertão que mora aqui dentro, imantado de cores terrosas, sons de berrante e cheiro de estrume. Desse pai, carrego em minhas entranhas, valores inquebrantáveis: honestidade, senso de justiça, respeito à vida e apreço ao trabalho. Foi com esses valores que eduquei minha única filha, untando-os com a doçura do amor e colorindo-os com os tons da liberdade. O resultado está aí: uma águia fêmea que se lança no espaço, conduzida pelos ventos da liberdade. Lua Marina pertence a uma geração que acredita  poder mudar o mundo. É, muitos jovens de agora, voltaram a sonhar com a justiça social – velho sonho esquecido por minha geração que cresceu sob o manto negro da Ditadura. Lua pretende tomar para si, a causa do Direito dos fracos e desvalidos. Difícil caminho, perigosos atalhos, penhascos abruptos.
Em que momento a garota com nome de artista resolveu embrenhar-se na seara (devia ser Saara) do Direito?
 Parece que passou tão pouco tempo desde que minha garotinha gorducha juntava o dedo polegar ao indicador para me mostrar um pedacinho de unha e dizer, sempre que eu a reclamava em tom alterado: “Olha o meu tamaninho e olha o seu, Ana Maria”! Essa constatação irrefutável me desarmava e me trazia de volta ao centro. Eu ficava ali parada, feito boba – olhando do alto do meu tamanho – aquela pessoinha de menos de seis anos de idade e pensando em sua lição de sabedoria. Acho que, naquele gesto, já se anunciavam a serenidade e o senso de justiça que norteariam os caminhos de minha filha na idade adulta. Essa moça tem o dom das palavras e com elas pretende lutar para reformar o mundo.
É isso meu pai, coronel Plínio da Matinha. Essa menina magrela, que tem pés de dançarina, mãos de desenhista e coração de poeta, pretende sair pelo mundo como uma Quixote – de shortinho curto ou de saia longa – defendo os oprimidos com a espada de luz de que são feitas as palavras. 

Ref. da imagem:vaqueiro fotografado por mim em 06-05-2012, no CCAM, no evento  "Celebração das Culturas Sertanejas".