domingo, 1 de janeiro de 2012

UM PEDAÇO DO CÉU


UM PEDAÇO DO CÉU

               Eu era muito criança. Devia ter uns seis anos, mas ainda me lembro daquela tarde. A trovoada veio muito rápida. De repente o céu se fez negro, e um vento forte começou a sacudir a copa das árvores. Logo nossa mãe mandou que entrássemos. Fechou as portas e janelas, cobriu os santos e os espelhos. Nós queríamos ver a chuva, mas ela nos fez ficar quietos em seu quarto. Amedrontada, sentou-se toda encolhida na cama passando as contas do rosário e rezando bem baixinho. Ficamos em silêncio ouvindo o ribombar dos trovões e as pancadas da chuva no telhado. Parecia que o mundo estava se acabando – diria minha mãe mais tarde. Nós, ao contrário dela, não tínhamos medo algum e adorávamos chuva forte com relâmpagos e trovões. Mas daquela vez foi diferente. Era uma tempestade violenta, e fiquei um pouco amedrontada.
Quando finalmente a chuva amainou, saímos do quarto. Era de tardinha, e a casa estava quase às escuras. Caminhávamos tateando as paredes do corredor, tentando enxergar através da penumbra. Logo percebemos que a chuva e a ventania haviam feito muitos estragos. Havia muita sujeira e telhas quebradas pelo chão. Ao chegarmos à sala de jantar, percebemos que algo extraordinário havia acontecido: o vento destelhara a cumeeira.
Não sei o que os outros viram; o que vi jamais esquecerei.
Fiquei parada no último degrau do corredor, fora do tempo, olhando aquele cenário irreal: a mesa grande, preta de tão encardida; as cadeiras escuras fantasmagóricas, tudo sujo de fuligem e de pedaços de telha; o espelhinho do lavatório coberto com uma toalhinha branca; a bacia de esmalte cheia de água amarela; a pequena cristaleira com o vidro quebrado expando os pratos de visita... Tudo envolto numa penumbra azulada e, ao mesmo tempo, banhado de luz. Não havia candeeiro aceso nem luz do sol. As janelas e portas estavam fechadas, mas havia uma luminosidade suave e acinzentada clareando tudo. Olhei e vi o teto negro de fuligem com um buraco enorme e azulado. Por aquele buraco entrava – na sala – o céu cinza-claro, quase prateado, lavado de chuva...
Não sei por quanto tempo quedei-me ali, reverente, olhando esse pedaço de céu...  e admirando aqueles objetos pela primeira vez – em toda sua pobreza – envoltos numa feiúra que, naquele momento, me parecia inexplicavelmente bela. Aproximei-me da mesa. O céu estava perto e pairava sobre minha cabeça. Como era possível aquilo? O céu sempre fora tão inatingível, tão distante... E agora estava tão perto, tão pequenino... meu céu. Achei que poderia tocá-lo com a mão se conseguisse uma escada bem alta para subir na cumieira da casa...
Olhei mais um pouco e vi que sobre a mesa, nas cadeiras, no chão, em toda parte, havia pequeninas pedrinhas transparentes – cristaizinhos de luz... Quando eu os colocava na palma da mão (tão frios), logo eles desapareciam. Alguém falou em chuva de granizo. Disseram que aquelas pedrinhas eram de gelo. Gelo!? Na boca, elas derretiam... Eram de água!
 Saí para o terreiro, e o chão estava salpicado por uma infinidade delas. O terreiro estava iluminado por milhares de pontos de luz, como se fossem pedras preciosas ou pequeninos pedacinhos de estrelas. Eu escolhia os maiores, punha-os na mão e ficava olhando até vê-los sumirem rapidamente; restava apenas uma porçãozinha de água... Olhava ao meu redor, e o mundo inteiro estava  parado. Não existia nenhum movimento: as quixabeiras impassíveis sobre um tapete de frutinhas escuras; as folhas das bananeiras rasgadas, imóveis; os porcos quietos como as varas negras do chiqueiro; as galinhas e os perus parados a contemplar, filosóficos aquele mundo novo; o pássaro, preso na gaiola, encolhia-se em seu terno negro sem vontade de fugir... Não havia nenhuma cor. O capim, as juremas, os mandacarus, os umbuzeiros e até as flores haviam descolorido. E o céu cinza-prata – agora imenso – continuava próximo, redondo, abraçando tudo ao redor. O mundo inteiro era uma fotografia em preto e branco.
Houve um momento em que minhas irmãs entraram, e fiquei sozinha lá fora. Só eu, uma criança sozinha naquele imenso mundo ártico... E escutei as árvores, e escutei o gado, e escutei o vento, e escutei a fonte, e escutei o riacho. Não havia nenhum som. Apenas o Silêncio.
Voltei à sala e olhei novamente cada coisa: os móveis, os objetos, as paredes, as portas, as janelas, o telhado, o chão... E, de novo, era como se os visse pela primeira vez. Olhava meu pedaço de céu, limitado pelas telhas, projetando-se para o infinito, e meu coração se regozijava como se tocado por algo sagrado. Uma vez li (Não me lembro quem disse, mas foi alguém do grupo que construiu Pampulha) que a Poesia às vezes passa num lugar – suave e furtiva – quase como uma brisa. Porém, por alguns instantes, pode-se perceber sua presença. Acho que, naquela tarde, a Poesia entrou pelo buraco no telhado, iluminou os móveis toscos da sala, assoprou a água amarela da bacia, mirou-se nos cristaizinhos de granizo e fugiu... Foi embora antes que a escuridão, já instalada na cozinha, invadisse a sala, antes que a menina de cabelos encaracolados, sentada no batente do corredor, pudesse compreender por que queria guardar – como um tesouro – aquela sensação de beleza... de mágica. Lembro-me de que fugi pela penumbra do corredor e quedei-me na sala de visitas, bem perto do lampião. Em meu coração, havia uma imensa vontade de chorar. Teria a menina descoberto a efemeridade da vida?

(fevereiro de 2002)

2 comentários:

  1. É tudo tão lindo...
    Que não cabe dentro e transborda pelos olhos.

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  2. Muito bonito!! A indagação final me parece conter um sentimento filosófico,poético. Ana Rosa, Parabéns!!!!

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