segunda-feira, 5 de março de 2012

DONA FELIPA

            




Hoje, antes de dormir, resolvi escrever sobre uma figura muito especial, um dos personagens que habitam minha infância. Vou lhes apresentar Dona Felipa. Há muito tempo, essa fulana estava esperando que eu lhe deixasse sair do baú da memória e lhe desse voz, assim por escrito, que ela era cheia das vaidades e das importâncias, como vocês mesmos hão de comprovar.
 Imaginem, vocês, que, um dia desses, fui com minha mãe visitar uma amiga que se achava muito abatida, de caruara, como diria Dona Felipa, e quando lhe contei uns causos dessa dona, Lúcia Araújo deu tanta risada que, no final da tarde, estava tão animada que nos convidou para um café sertanejo que ela mesma prepararia no dia seguinte. E não é para me gabar, não, que o mérito é de Dona Felipa, mas depois do café sertanejo, em que lhe presenteei com uma sacola de batatas doces, em nome de minha personagem, Lúcia ficou tão íntima de Dona Felipa, que agora vive a convidá-la para casamentos, batizados e aniversários de sua família. Ah, e as duas tratam-se por comadre! Minha amiga, pessoa de imaginação fértil, não vê nada demais em manter camaradagem com um personagem; e, como espírita praticante, acha normal relacionar-se com alguém que mora no além. Mas chega de dispersão e vamos falar de Dona Felipa.
Ela era uma das mais antigas rendeiras de nossa fazenda. Morava numa casa de taipa, num pedacinho de terra cedido por meu pai. Era lá no alto, perto do Tanque Grande, um pouco longe de nossa casa. Ninguém sabe, ao certo, com quantos filhos, ela e seu Canuto chegaram às nossas terras nem quantos negros fortes e retintos nasceram depois em sua cama de varas. Só sei que eram tantos, que ela mesma perdia as contas. Dona Felipa – todos diziam – era louca. Devia ser essa a razão do meu interesse especial por ela. Dizem, por aí, que as crianças e os loucos muito se parecem e, por isso mesmo, muito se entendem.
Lembro-me de que costumava chegar a nossa casa depois do almoço, mas se o marido vinha junto, chegavam à boquinha da noite e ficavam até tarde. Dona Felipa, ligeira e espevitada, vinha à frente; seu Canuto atrás, arrastando a alpercata de sola, sereno e altivo como um senhor das savanas. Sentavam-se no avarandado junto com meus pais. Ele, no banco com o patrão, deixava o cachimbo no bolso e fumava os cigarros de palha que eles preparavam, picando o fumo de corda bem miudinho e enrolando num pedaço de palha, claro e macio, como um retalho de linho. Os dois fumavam, e a conversa ia evoluindo nas ondas da fumaça perfumada. Falavam da lida da fazenda: cerca quebrada, burrego enjeitado, plantio de capim, capinação de feijão e todo tipo de assunto da roça. A mulher, de cócoras, junto do banco de minha mãe, pitava o cachimbo  asescutando a conversa dos homens, enquanto o escuro chegava de mansinho, e a lua reinava no céu. Eu, menina de poucos anos, sentada no banco das mulheres, observava tudo ao redor e ia guardando os sons da noite e os cheiros do mato, que imantariam cada causo e cada pessoa daqueles tempos, eternos, em minha lembrança. Eu já trazia em mim, o gosto de observar as pessoas, por isso posso lhes descrever a pessoa de Dona Felipa, não sei se fielmente, mas como a carrego no baú.
Felipa Doida era uma negra cor de formiga, baixinha e gorducha. Tinha o cabelo vermelho, foveiro, como diziam na roça, já começando a embranquecer. Costumava usar um penteado de criança: o cabelo enrolado em montinhos amarrados com cordão de embrulho. Mas, se fosse fazer visita, usava um lenço branco meio encardido; estando a trabalho, botava o velho chapéu de palha para proteger-se do sol. Fumava cachimbo, tibero, em nossa região; tinha lábios grossos, divididos de um lado por causa do cachimbo que, conforme o ditado, "deixa a boca torta". Posso vê-la chegando a nossa casa com o chapelão de palha, o vestido de chita e o bocapiu de milho, a anunciar-se pela risada e pelo grito de “Ó de casa, cumade Lesinha!” Minha mãe, dona Lindinha, respondia da cozinha: “Entre cumade, Filipa, deixe de cerimônia.”
Ela entrava, oferecia os milhos verdes, depois, puxava um corte de chita ou de um tecido xadrez, chamado bulgariana e entregava à costureira. Lembro-me de que a paixão por roupas era uma de suas excentricidades. Minha mãe e minhas irmãs eram suas costureiras. Dona Felipa dizia o modelo, combinava o preço e passava o resto da tarde contando causos salpicados de ditados e risadas.
No dia marcado, recebia o vestido, elogiava, agradecia e voltava para casa entonando a roupa nova; a outra ia numa trouxinha, embaixo do braço. Saía saltitando de alegria, mas, passados dois ou três dias, a velha voltava ressabiada.
Chegava, sem se anunciar - com arzinho escabreado - pitando o tibero. Vinha com o mesmo vestido – todo remodelado. Horroroso - diziam minhas irmãs; uma lindeza, pensava eu. Lembro-me bem da frase com que a costureira, ofendida, recebia a coitada: “A senhora botou o vestido a perder!” E começava a mostrar-lhe os defeitos: a saia estava curta demais; tinha várias pontas; o decote ficara enorme; as cavas das mangas desajeitadas; a barra franzida. Estava tudo um horror. O vestido está perdiiido, uma porcaria – dizia a costureira, zangada.
Quando outra pessoa, tentando acalmar os ânimos, lhe perguntava por que bulira no vestido novo para estragar daquele jeito, ela respondia – agora com certa empáfia – soltando a fumaça do cachimbo pela boca torta: "A cumade fez meu vistido feio, botô a perdê, entonce, eu arresorvi consertá pra ficá mai bunito." Não adiantava debocharem nem insistirem nos defeitos, ela não ligava. Por vingança, a costureira da vez, jurava que nunca mais lhe faria outra roupa. Dona Felipa dava de ombros como se dissese "nem tchum". Mudava de costureira. Outra irmã, depois de muita adulação e elogio, fazia o próximo vestido.
Nesse assunto de roupa, minha mãe complementou o causo com a informação de que a comadre Felipa não tinha agulha de costura, nem linha ou tesoura, mas costurava assim mesmo. Cortava o vestido com a faca de cozinha; fiava um pouco do algodão, que ela mesma plantava no quintal, e fazia um pequeno novelo de linha; depois, sentava na esteira e costurava o novo modelo com uma agulha bem grossa, a suvela, que seu Canuto usava para costurar couro.
 Nesse ponto, para prestigiar minha mãe, pedi que contasse o causo da vaca parida.  Dona Lindinha, com setenta anos, assumiu o papel de narradora e contou os tantos e entretantos, na sua fala de mulher de poucas letras.
- Cumade Filipa era doida. Nunca lhe entreguei menino novo pra olhar nem roupa branca para alvejar. Um dia, bem no empino de meio-dia, ela chegou quase nua, com a boca no mundo e a saia na cabeça. Pensei que tinha endoidado de vez. A maluca véa tava sem chapéu, com o cabelo assanhado como uma casa de arapuá. Mandei abaixar o vestido e a combinação, tomasse juízo que tinha home em casa. Ela entrou porta a dentro, vermelha como uma galinha de pescoço pelado, coçano as pernas e se explicano. Tinha sido o diabo daquela vaca pegadeira! Ela evinha passano desincramada, quando encontrou o bezerro novinho. Tratou de apertar o passo, mas a vaca apareceu da moita de capim, enfezada feito uma onça. Na fuga, pernas pra que te quero, e a vaca babano, pega aqui, pega acolá – a coitada caiu numa moita de cansanção. Eu e as menina se rimo da maluca. “Quem mandou a senhora ser lerda e passar, com a cara pra cima, perto de uma vaca parida?! Não sabe que Mimosa de mimo só tem o nome? Quando dá cria, nem Prino pode com a valentia dela!” Cumade Filipa passou o resto da tarde deitada no avarandado dos fundo da casa, pra se refrescar na frieza do piso de cimento. Até dei um pedaço de fumo de meu marido Prino pra ela fazer um cigarro; a coitada tinha perdido o tibero junto com a percata e o chapéu.
Para fechar o assunto, com chave de ouro, a experiente narradora contou o causo das batatas, animada pelas risadas de Lúcia e pelo café com bolo, que a dona da casa mandou servir, desculpando-se por não ter nem requeijão nem batata doce.
 - Olha, meninas, esse caso aconteceu com Elza de Dirizui, que também batizou um menino de Filipa. Um dia de domingo, ela foi fazer uma visita, toda cheia das cerimônias, com um presente para a professora Elza. Acho que era adulação pra vê se Elza costurava outro vestido depois que ela remodelou um vestido trabalhoso e desgraçou todo. Mas, nos tempo de fartura, ela tinha esse costume de dar um agrado. Podia ser um cozinhado de feijão, uns maxixes, umas espigas de milho ou umas batatas. Elza contou que ela foi chegano, toda suada, e lhe entregano o presente. Depois se desculpou pela embalagem, assim como quem está escabriada. Elza, desconfiada, olhou o saco branquinho e não viu nada de errado. Mas, assim que desatou o nó do cordão, percebeu que o saco era uma calçola. Filipa tinha chegado na cozinha segurando o fundilho como alça, e a calçola de morim parecia um saco. A danada explicou - pitando o tibero - que já havia colhido as batatas quando se lembrou do saco. Então, o jeito foi amarrar o cordão da cintura e botar as batatas dentro. Se a cumade Elza tivesse nojo, era só dicascar antes de botar no fogo!
Aqui em casa, às vezes, me chamam de Dona Felipa, Maria Felipa ou Felipa Doida. Eu não ligo e, até, gosto da comparação. Costuro minhas roupas, sempre de modelos inusitados, reformo e, de vez em quando, a costura ou o conserto não dá certo. Assim que reconheço o desastre, começam as gozações e, logo, uma irmã fala que foi uma “felipice” Eu, muito exigente com o acabamento e o caimento da roupa, não uso uma roupa perdida de jeito nenhum, mas dou de presente a alguém que caia de amores por ela. Esse prazer (ou doidice) em comum, só aumenta minha estima por Dona Felipa!
A vocês, que escutaram nossas vozes, eu agradeço de coração, e se tiverem gostado da prosa, Dona Felipa está por aí, pitando o cachimbo, toda cheia de si, ainda mais contente do que eu.

(abril de 1998)

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