segunda-feira, 19 de março de 2012

VIAJANDO COM ALEILTON FONSECA

Foto de Sebastião Salgado


ENCONTRO COM “NHÔ GUIMARÃES”

Esse é o segundo comentário de leitura que faço do livro de contos “O Desterro dos Mortos” do autor Aleilton Fonseca. Falo do conto “Nhô Guimarães”.

Desde o título, percebi que aquela prosa iria ser boa. Apeei do cavalo pouco depois de Aleilton, e fui logo me acomodando. Ele já sentara perto da velha sertaneja, tomando nota de tudo que ela dizia, do mesmo jeito que ela falava: “O senhor se querendo, anote.” É isso mesmo, não se engane, não! O moço que chegou a cavalo e foi confundido com Guimarães Rosa – Nhô Guimarães – como era conhecido nos Gerais, é Aleilton Fonseca. Aliás, pretendo demonstrar que ele se faz presente em quase todas as histórias desse livro. Isso não é fácil de perceber, mas um leitor mais atento descobrirá que ele se presentifica no ambiente das histórias, através de um alter ego – um jovem instruído – oriundo da cidade grande, mas de origem sertaneja. Esse moço viaja – precedido pela Morte – para reencontrar pessoas ou, simplesmente, para recordar o passado.
Nesse conto, intitulado “Nhô Guimarães”, o moço chega a cavalo, apeia na casa da velha e passa a ser, apenas, o ouvinte. Não há nenhum registro de fala sua, embora a velha  lhe dê conselhos e lhe faça perguntas retóricas...  Assim, ele está onipresente em toda a narrativa, escutando o relato da velha senhora, aceitando café coado na hora e bebendo água do pote: “Assunte esse diálogo e pronto, depois a gente prova mais um café coado.” Aleilton Fonseca poderia (ele é o dono da história) ter escolhido esse personagem como narrador. Mas, não. O narrador é a velha sertaneja, e, nisso reside grande parte do encanto desse conto. O autor dá voz a essa mulher que – num monólogo ininterrupto – relembra e revela episódios de passado, principalmente as visitas de Nhô Guimarães, a quem ela define como "um homem de sobejas importâncias". É o mesmo processo narrativo do autor Guimarães Rosa, no livro Grande Sertão: Veredas. Ali, o sertanejo Riobaldo recita um monólogo revivendo o passado de jagunço e a trágica história de amor com Diadorim, ao confiá-la a um ouvinte de passagem por sua fazenda. Ao usar o recurso do monólogo, Aleilton pode, livremente, registrar a linguagem oral do sertão, pontuada de arcaísmos (prosar, pitos... perquiriu, assuntar) e de frases saborosas: “Ah, me deixe! Eta, diaaaá! Ah, pois não é?”  Essa é a linguagem do povo do sertão – pessoas de muitos saberes e pouca instrução – um dialeto cheio de palavras e ditos que há muito caíram em desuso na cidade grande e cercanias.
Então, essa linguagem, assim como o fio da narrativa em forma de monólogo – na voz de um personagem sertanejo – a relembrar o passado, reafirma aquilo que já se anunciava no título: o conto “Nhô Guimarães” é uma homenagem ao escritor Guimarães Rosa. O tempo inteiro, Aleilton Fonseca nos conduz com seu fio mágico pelas veredas do sertão e nos enreda numa teia, que semelhante a uma ponte pênsil, nos leva ao já citado romance de Guimarães Rosa, num movimento contínuo de vai e vem.
Chama minha atenção, também, o fato do narrador-personagem ser uma pessoa idosa: octogenária, independente, ativa e lúcida. Ela recorda o passado e revive fatos importantes guardados em sua memória afetiva e os presentifica através do ato de narrar. Isso a faz viver com plenitude: “Eu narro, no gosto de contar o causo, até melhor que a realidade.” Com esse personagem, o autor reverencia o idoso como alguém que acumulou inúmeras experiências, donde deriva sua sabedoria. A octogenária, em vários momentos, previne e aconselha o moço da cidade que escuta sua narrativa: “O bem e o mal, esses amigos, andam de abraços: todo cuidado é pouco”. Ou “Fique no aguardo: de vez em quando o tempo dá um suspiro”. Além disso, ela retoma o papel de guardiã do passado, uma tradição que vem desaparecendo em nossa sociedade, que supervaloriza a juventude e despreza os mais velhos. Quem sabe, guardar e recordar o passado não seria um modo prevenir o mal de Alzheimer?
Destaco, ainda, o fato de que o personagem é mulher. É uma mulher plena, sábia, legítima representante do feminino sagrado. Ela parece erguer-se de um passado longínquo onde a mulher era a sacerdotisa, a senhora da criação, a guardiã de vastos saberes. Esse papel se evidencia em suas próprias palavras: “Hoje eu mando em tudo, estou no meu direito“; “Reconto a vida do meu jeito que gosto muito de prosar comprido”.
Nesse ponto, eu poderia encerrar minhas inferências de leitura, mas me comprometi, desde o título, a fazer o relato de uma viagem. Então, retomo esse destino relembrando a chegada.
Depois de tomar assento, fiquei escutando a prosa comprida da velha e, à proporção que ela contava os causos, eu tinha a impressão de que a pequena casa ia sendo povoada por aqueles personagens: Manu, o finado marido; o filho desaparecido na cidade grande; Nhô Guimarães, vestido com o gibão de couro preto, dando risadas, a fazer anotações das prosas de Manu. Até Manuelzão passou de relance tocando uma boiada. Porém, a certa altura da prosa, meu pensamento voou, que em pensamento ninguém manda, e eu arribei dali e fui seguindo por uma veredazinha pracatá, pracatá, pracatá... Quando dei por mim, estava no sertão de dentro – no meu sertão interior – território sagrado com cheiro de velame, som de berrante, gosta de umbuzada, banho de riacho e céu estrelado. Essa é uma das mágicas da arte literária, não é mesmo?
Pois então, doutor Aleilton, vou me demorar nesse pouso, porque tem muita gente querendo seguir viagem comigo: é vaqueiro, é cigano, é maluco, é rendeira, é parteira e até assombração.
Encerro está viagem (com um recado para vosmicê e para todo mundo) parafraseando a velha sertaneja: Eu escrevo, no gosto de contar histórias, até melhor que a realidade. Há muito aprendi que as histórias têm poder de cura, pois através delas podemos dar passagem aos apelos do sentimento, sendo que a maior parte de sua beleza consiste no jeito de contar.

4 comentários:

  1. Quanta poesia...lindo texto, me remeteu realmente a Grande Sertão Veredas.Parabéns!

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  2. Ana Maria Rosa, eu simplesmente adorei sua viagem ao encontro dessa narradora do nosso sertão cultural e simbólico. Muito obrigado. Um abraço.
    Aleilton Fonseca

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  3. Muito bom!
    Belíssimo texto, faz uma leitura fantástica do conto Nhô Guimarães.

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  4. Belíssimo texto!
    Você fez uma maravilhosa viajem, e me fez viajar também nas entrelinhas do conto

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