Hoje
é dia 17 de maio de 2012. Contagem regressiva: faltam dois dias para a colação
de grau de minha filha Lua Marina . A
família Rosa Moreira está se
preparando para uma grande festa com roupa de seda, terno preto e banda de
música. É justo que seja assim: ela será a segunda (a primeira sou eu) a
concluir a graduação de nível superior. Receberá o diploma do curso de Direito
da UEFS. Será advogada, “doutora
adevogada” como diria meu pai, Plinio
da Matinha. É dele que quero falar nesse texto.
Meu
pai, se fosse vivo, estaria cheio de orgulho da formatura dessa neta e se
sentiria recompensado por sua decisão de mudar-se do campo para a cidade, a fim
de “dar estudo” aos filhos mais novos. Há quarenta e sete anos, ele e minha mãe
deixaram a fazenda Matinha, grande e bem cuidada, e migraram para a cidade de
Santo Estevão, a uns duzentos e poucos quilômetros de Salvador, com o sonho de
ver a família progredir através das letras. Matriculou a filharada na escola e
descansou o coração. Muitos Moreiras desviaram-se do caminho, mas alguns estão
retornando, e outros ( netos e bisnetos) estão em faculdades ou começando os
estudos. Vem muito doutor Moreira por aí, como seu Plínio sonhou.
Criei
minha filha falando desse avô sertanejo, que ela não chegou a conhecer, mas de
quem tem uma imagem forjada a partir de minhas contações de histórias da
família. Aprendeu a admirar o homem que começou a vida como tropeiro, aos doze
anos de idade, vendendo farinha no lombo do burro por todo o recôncavo baiano,
até tornar-se proprietário de uma grande fazenda e próspero criador de gado.
Ainda ontem, à noite, eu lhe contei de suas andanças pelos Gerais onde comprava gado: Numa madrugada, ele partia dirigindo o Jeep verde e, numa tarde, depois de
trinta dias ou mais de ausência, ouvíamos a buzina do carro e começávamos a
gritar “Pai evenhe, pai evenhe ...” até que avistávamos o bravo jeepinho – agora vermelho
– coberto de poeira das terras do Sertão Alto. Dele, saltava o motorista
queimado de sol - marrom avermelhado dos pés ao chapéu panamá – os braços
abertos, os olhos cheios de lonjuras e a voz rouca de causos que contaria na
beira da fogueira. Alguns dias depois, o som do berrante anunciava a chegada da
boiada, e meu pai corria para o avarandado com os olhos brilhando. Não demorava
muito, avistávamos uma nuvem de poeira e, dali a pouco, um mundaréu de bichos invadia
a malhada, e a fazenda se enchia de sons e de cheiros. Os homens encourados
arranchavam na malhada, acendiam a fogueira e passavam a noite relatando ao
patrão os percalços da viagem entremeados de histórias de assombração.
Dessas viagens, trago na lembrança, nomes e imagens de terras
longínquas onde nunca estive e um Sertão que mora aqui dentro, imantado de
cores terrosas, sons de berrante e cheiro de estrume. Desse pai, carrego em
minhas entranhas, valores inquebrantáveis: honestidade, senso de justiça,
respeito à vida e apreço ao trabalho. Foi com esses valores que eduquei minha
única filha, untando-os com a doçura do amor e colorindo-os com os tons da
liberdade. O resultado está aí: uma águia fêmea que se lança no espaço,
conduzida pelos ventos da liberdade. Lua Marina pertence a uma geração que
acredita poder mudar o mundo. É, muitos
jovens de agora, voltaram a sonhar com a justiça social – velho sonho esquecido
por minha geração que cresceu sob o manto negro da Ditadura. Lua pretende tomar
para si, a causa do Direito dos fracos e desvalidos. Difícil caminho, perigosos
atalhos, penhascos abruptos.
Em que momento a garota
com nome de artista resolveu embrenhar-se na seara (devia ser Saara) do
Direito?
Parece que passou tão pouco tempo desde que
minha garotinha gorducha juntava o dedo polegar ao indicador para me mostrar um
pedacinho de unha e dizer, sempre que eu a reclamava em tom alterado: “Olha o
meu tamaninho e olha o seu, Ana Maria”! Essa constatação irrefutável me
desarmava e me trazia de volta ao centro. Eu ficava ali parada, feito boba –
olhando do alto do meu tamanho – aquela pessoinha de menos de seis anos de
idade e pensando em sua lição de sabedoria. Acho que, naquele gesto, já se
anunciavam a serenidade e o senso de justiça que norteariam os caminhos de minha
filha na idade adulta. Essa moça tem o dom das palavras e com elas pretende
lutar para reformar o mundo.
É isso meu pai, coronel
Plínio da Matinha. Essa menina magrela, que tem pés de dançarina, mãos de
desenhista e coração de poeta, pretende sair pelo mundo como uma Quixote – de
shortinho curto ou de saia longa – defendo os oprimidos com a espada de luz de que
são feitas as palavras.
Ref. da imagem:vaqueiro fotografado por mim em 06-05-2012, no CCAM, no evento "Celebração das Culturas Sertanejas".
Que lindo!!chorei.
ResponderExcluirlegal,fantástico vale a pena lutar por algo que nós amamos
ExcluirQuanto sentimento, quanta sabedoria! E tudo temperado com sua qualidade poética.
ResponderExcluirParabéns, Ana Maria Rosa, você merece o melhor.