Quando ela retornou à sala, o menino
comia vorazmente. Escondia o alimento entre as mãos. O suco escorria-lhe pelos
cantos da boca. Ao perceber o olhar guloso da menina, passou a comer com
requintes de prazer: chupava, revirava os olhos, estalava a língua, sussurrava
e lambia os beiços. Que fruta era aquela? Onde ele tinha achado? SAPOTI! No quintal
da outra professora! Implorou por um pedacinho, só para experimentar. Não. Se
quisesse, fosse procurar pelo chão ou jogasse pedras até derrubar um. Então era
por isso que aquele moleque corria para o quintal assim que a professora dava o
recreio da banca! As meninas iam brincar na praçinha da igreja e voltavam tristes
de fome, enquanto o peste do gordo enchia a pança e voltava do recreio todo risonho
e ainda mais pirracento.
Teve vontade de se vingar. Podia
combinar com as outras de contarem tudo à dona da casa. Com certeza, a velha
Catarina iria lhe passar uma descompostura terrível e exigir da sobrinha, a
meiga professora, um bom castigo para o atrevido. Naquele tempo, derrubar fruta
do quintal do vizinho era malinagem imperdoável ou até mesmo um furto. Chegou a
imaginar a cena: dona Catarina escura de raiva, postura de general, dedo em
riste a exigir explicações; e o moleque pálido, colado na parede, a papada
tremendo, sem conseguir gaguejar uma desculpa. Por alguns segundos, ficou
dividida entre os dois prazeres: a vingança ou o sapoti. O recreio estava quase
terminando, o tempo urgia e o estômago exigia. Olhou o relógio da sala e pediu
a Deus que a professora cochilasse um pouquinho além da meia hora habitual.
Correu para o quintal. Procurou, procurou e nada. Não havia nenhuma fruta no
chão. O jeito seria atirar pedras. Olhou para o alto e viu o sapotizeiro imenso
– tão alto quanto as palmeiras da praça – carregado de frutos. Ela tinha pontaria
péssima, nunca conseguiria derrubar um sapoti. Atirou pedras até ouvir o
sininho da professora. Voltou de cabeça baixa para não ver a cara debochada do
gordo.
Aquele fracasso se repetiu infinitamente:
quando saiam juntos ao quintal, ele dizia que não tinha nenhum sapoti maduro;
se saía primeiro, o gordo ficava terminando uma tarefa; se ia brincar na praça,
o bandido fugia para os fundos e ainda lhe mostrava uma fruta escondida no
bolso da calça. O pior era quando ele não tinha tempo de comer e passava o
resto da tarde lhe fazendo figa: cada vez que a professora se ocupava com uma
das meninas, apontava o bolso ou lhe
mostrava uma pontinha do sapoti. Ela ficava doida para falar dos sapotis com as
colegas, mas desistia porque um movimento maior no quintal, chamaria a atenção
de dona Catarina ou mesmo do pessoal vizinho.
Foi assim até o finalzinho da safra,
quando teve uma ideia salvadora: Chegaria à banca mais cedo e encontraria um ou
dois sapotis caídos no chão; talvez até mais, porque chovera pela manhã e era
segunda feira.
Assim fez. Com meia hora de antecedência,
foi recebida por dona Catarina que lhe mandou ir brincar nos fundos porque era
cedo demais e estava com uma visita na
sala. A menina voou até o quintal com a boca cheia de saliva e o coração
exultante. Olhou, olhou, esquadrinhou palmo a palmo e não encontrou nenhuma
fruta, sequer uma estragada. Frustrada em seu desejo, tomou uma decisão da qual
se arrependeria por toda a vida.
Empilhou uns tijolos, juntou dois
caixotes, trepou no muro e pulou para o quintal vizinho. E que maravilha! O chão sob a sapata estava coberto de folhas e
de sapotis! Escolheu os maduros, encheu a saia do vestido e, radiante, correu
para pular o muro. Só então percebeu que, daquele lado, o muro era bem mais
alto. Ansiosa, começou a procurar algo que lhe facilitasse a subida: uma pedra,
um toco de madeira, uma escada. Não encontrou nada. Nervosa, avistou umas
cadeiras na varanda e correu para pegar uma. Foi, então, que a brincadeira
acabou.
Havia uma pessoa caída no quintal Seu
coração disparou, os ouvidos zumbiram, as frutas despencaram do colo. Ali, no
meio do caminho, um pouco antes da varanda, uma menina jazia no chão. Viu o
vestido branco meio suspenso, as pernas abertas, o cabelo desalinhado, o rosto
arroxeado e sujo de vômito. A menina estava morta. Era Valdirene, a filha da
vizinha. Tentou gritar, não conseguiu. Ficou paralisada, mas de algum modo,
suas pernas adentraram a casa deserta e chegaram ao quarto da mãe. Com um fiapo
de voz, acordou a mulher e lhe falou da filha caída no quintal.
Em poucos instantes, os gritos da mãe
fizeram toda a vizinhança acorrer ao quintal. Angélica escapou pela porta da
frente e fugiu para casa. Escapou, mas levou consigo uma fotografia daquele
quintal: o muro sem reboco, a árvore imensa, a terra molhada, as folhas caídas,
os sapotis esparramados no chão, a menina morta e a mãe agarrada ao corpo da
filha uivando...uivando.
Só algum tempo depois, escutando um comentário
aqui, um cochicho ali, ficou sabendo que a menina havia morrido envenenada. Uns
diziam que Valdirene havia comido batata com leite no café da manhã, outros que
merendara manga depois de tomar leite, e alguns sussurravam que a madrasta lhe
oferecera um pedaço de bolo envenenado. A bruxa morava na casa vizinha e teria
lhe entregado o bolo por cima do muro. Diziam que a viúva não queria repartir
com a enteada a pequena fortuna que o marido deixara. Não achava justo com seus
dois filhos que a bastardinha herdasse alguma coisa.
O caso foi abafado, e a verdade, que
só o imenso sapotizeiro testemunhou, nunca veio à tona.
O tempo passou, a menina mudou de
cidade, entrou na faculdade, tornou-se professora. Cresceu sem nunca
experimentar um sapoti. De vez em quando, era tentada por um cesto cheio numa
banca de frutas: parava, olhava e seguia em frente.
Um dia, uma colega lhe presenteou com uma
sacola cheia de frutas. Disse-lhe
que era a fruta mais deliciosa do mundo e exigiu que comesse uma, ali mesmo, na
sala dos professores. Angélica tirou um pedaço do pequeno fruto cor-de-terra. Mastigou
lentamente. Engulhou. A fruta era doce demais; a polpa crespa e arenosa dava
uma agonia na ponta da língua. Como era enjoado o sapoti! Que decepção!
Ana Maria Rosa (2011)