quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

CRÔNICA DE UM TRIÂNGULO








Minha empregada é uma mulher de vinte quatro anos. Trabalha em minha casa três dias por semana. Vem de um distrito próximo, deixando os dois filhos, um menino de oito e uma menina de quatro anos, entregues cada qual aos cuidados de uma parenta. Chega às sete horas manhã, trazendo uma bolsa pesada com a roupa de trabalho, um sorriso alvíssimo e os olhos oblíquos iluminados pela força guerreira de seus ancestrais africanos.  Assim que entra, sua voz cheia preenche os espaços de silêncio com as novidades e causos acontecidos no distrito, e um vendaval de personagens invade todos os cômodos. Quando dou por mim, eles já se misturaram aos outros que circulam ao meu redor, envolvendo-me no redemoinho de suas vidas.
Hoje, mesmo antes de abrir-lhe o portão da garagem, pude ver que ela vinha diferente: a sombra do corvo estava vitrificada em seus olhos. No mesmo instante, adivinhei de que região pantanosa brotava aquela dor que encurvava seu porte altivo. Toda mulher reconhece quando a que está à sua frente abandonou o traçado do circulo para caminhar em linha reta, de um vértice a outro do triângulo. Passou por mim, como um espelho sem luz. Mais tarde, voltou, cabisbaixa, para me contar, com voz rouca de tanto chorar, que o marido arrumara outra mulher: uma prima de dezessete anos que estava esperando um filho dele.
Seu homem  semeara no ventre de outra mulher, o filho que estavam adiando para quando aumentassem a casa e ele arranjasse “um emprego de carteira assinada”.
          Vi-a lutando para conter o mar que marulhavam em seu peito e ameaçava derramar-se em ondas pelos frágeis diques oblíquos. Tive vontade de abraçá-la. A mulher balançou sob o impacto das próprias palavras, mas firmou as ancas poderosas pondo as mãos à cintura e despejou sobre mim uma avalanche de perguntas: Existe dor maior que a da traição? A senhora já foi traída? Como é que eu faço para remendar meu coração despedaçado feito vidro de para-brisa? Antes que eu me pronunciasse, começou a repetir-me as farpas que outras mulheres lhe atiraram ao rosto: Sabe o que minha mãe falou? “Eu lhe avisei que ele era um moleque, um vagabundo, mas você não quis saber de conselho de mãe e foi viver com ele, agora, aguente”! E a mãe dele?  “Você tem que se conformar porque, hoje em dia, é moda tudo que é homem tem duas mulher”! Ela me detesta porque tem ciúme do filho e nunca me aceitou porque tenho um filho de outro homem. Somente minha irmã foi leal. Todo mundo na rua sabia e ninguém me contava nada. Agora, quando eu passo, ficam cochichando. Na certa, dizem que sou uma idiota. Ajudei meu marido em tudo, até a moto ele conseguiu por minha causa, porque fui eu que pedi a uma amiga para tirar no nome dela. A senhora sabia que tinha vezes que o cachorro me pedia o dinheiro da gasolina? E eu, como uma besta, dava vinte reais para ele encher o tanque, sem saber que ia buscar e levar a prima na roça. O que mais me dói é que quando chego daqui e peço uma carona até em casa porque tou cansada, ele não me leva, não! Mas a outra andava na garupa dele pra cima e pra baixo! É muito desaforo! Se aquele cachorro entrasse em casa no dia em que minha irmã me contou a verdade, eu furava ele todinho de faca! O sabido chegou na porta, todo arisco: “Não vou entrar, não! Tu quer me matar e não adianta negar porque, mesmo de longe, tou vendo minha morte em teu olho.  Vou dormir em mainha que não sou peru pra morrer de véspera! Sei que a peixeira tá escondida em tua roupa”. Isso ela me confirma – sem hesitação – Hera jurando vinganças terríveis.
Confirmo-lhe que a traição do ser amado dói feito estocado de faca cega, mas não há como evitar seu golpe, porque a traição faz parte da vida. Toda mulher já foi ou será traída, por mais bonita e desejada que seja. Cito os exemplos da atriz e da princesa, belas mulheres, traídas por seus maridos e expostas na mídia, impiedosamente, em escala mundial.
À tardinha, antes de se despedir, ela me segreda que não sossegará enquanto não souber tudo que aconteceu entre o marido e a outra mulher. Pretende obrigá-lo a revelar-lhe os mínimos detalhes “de suas intimidade”. Peço-lhe que desista dessa confissão porque esse conhecimento tornará seu sofrimento inumerável, mas ela se mantem irredutível, os olhos a vislumbrar imagens confiscadas pelo monstro de olhos verdes.
Então, eu me calo, sem encontrar palavras para lhe dizer que o triângulo amoroso é um relacionamento entre três pessoas e que, aprisionada num dos vértices do triângulo, a pessoa traída passa a relacionar-se com o “a coisa possuída” pelo ser amado e a desejá-la, tomando-a, de certo modo, como amante. Isso está latente na obsessão que domina a mulher traída de saber tudo sobre a rival. Muitas passam a viver como voyeurs, aprisionadas num labirinto de vidro, proteção e vitrine, de onde acompanham passo a passo a vida da outra. Algumas chegam a exigir do companheiro a compartilhamento de detalhes íntimos do relacionamento sexual dos amantes. E o que mais pode ser essa loucura, senão o desejo de envolver-se nesse relacionamento que parece excluí-la? Quem de nós não conhece, na ficção e na não ficção, exemplos de triângulos amorosos em que o desejo latente da mulher ou do homem materializou-se sexualmente, passando o casal a dividir a mesma amante ou o mesmo amante? 
Como poderia explicar a ela que o triângulo amoroso possui um misterioso vórtice capaz de sugar com sua força magnética aqueles que dele se abeiram?

3 comentários:

  1. Uma das melhores reflexões que eu já li aqui! Excelente! Sua sensibilidade me comove.

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  2. Ana, ao ler me questionei se realmente se tratava de uma crônica ou se não era um conto (alguém também chegou a comentar comigo a mesma impressão, rs), acho que o seu texto ficou na fronteira desses dois gêneros, tanto pela história contada como pelo uso das figuras de linguagem, artifícios que conseguem atrair e prender ainda mais o leitor. Além disso, você como mulher ousou ao sugerir a mulher traída como um voyer... coisa que só mesmo uma mulher com a sensibilidade de escritora (e olhe lá) poderia se permitir enxergar. Adorei!

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  3. Adorei. Excelente, tanto sob o ponto de vista literário como psicológico. A estética da linguagem é estupenda, exemplo:"preenche os espaços de silêncio com as novidades e causos acontecidos no distrito, e um vendaval de personagens invade todos os cômodos. Quando dou por mim, eles já se misturaram aos outros que circulam ao meu redor, envolvendo-me no redemoinho de suas vidas."
    Você tem futuro, Ana Maria!
    Um abraço

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