Ontem, a conversadeira
Corina chegou quieta e sem nenhum causo para me contar. Reclamou da quantidade
de roupas miúdas para lavar e do monte de lençóis para passar. Botei umas
roupas na máquina, mandei passar só a metade dos lençóis, mas ela não se alegrou.
No meio da tarde, perguntei qual era a razão de sua tristeza. Ela me respondeu de
cabeça baixa, escondendo os olhos rasos de água:
_ Meu filho
Ismael quer ir morar com o pai. Ontem o pai me procurou para dizer que o menino
foi atrás dele. Quer morar com ele ou com a avó. Eu virei uma louca. Aleguei
que depois de criar meu filho sozinha não ia entregar de mão beijada pra um
vagabundo que só fez registrar e sumir. Ele vai morar em São Paulo. O que vai
ser de meu filho? Vai morar num barraco e vender doce na sinaleira? E a
madrasta? Ela vai judiar de meu filho, deixar passar frio e fome.
_ Você já
conversou com seu filho?
_ Já. Ele
falou bem assim: “A senhora não vive dizendo que vai me entregar ao meu pai?
Agora eu mesmo resolvi morar com ele”. Ah, Dona Ana, eu quase morri...
Expliquei a ele que era só ameaça da boca pra fora, porque ele é muito
desobediente. Falei que o pai não tem estudo nem profissão, que São Paulo é uma
cidade do tamanho do mundo e também não é fácil ser criado por madrasta, ainda mais
que ela já tem um menino.
- E fez
chantagem, alegou tudo que sofreu para criar o menino sozinha e tudo que tem
feito por ele?!
Silêncio e
suspiro respondem minhas perguntas.
_ E ele
respondeu o quê?
_ Disse que
quer morar com a avó porque Dona Nita gosta muito dele. E eu, dona Ana, não
gosto de meu filho? Eu bato porque é desobediente e vivo recebendo queixa dele,
mas também dou carinho.
- Ele deve
estar muito magoado porque apanhou depois de quase se afogar no açude. Onde já
se viu, Corina, mãe judiar de filho depois que ele passou por perigo de morte?
Ele precisava de colo, de carinho e de conselho para não tomar mais banho no
açude.
- É... Depois
do que a senhora me disse isso ontem, eu fiquei morrendo de remorso, mas nunca
pensei que ele ia querer me deixar por causa disso.
_ Eu não sei
se foi por causa disso. Mas venho tentando lhe ensinar que obediência se
conquista com amor e limite. Grito e surra só servem para humilhar e judiar a
criança. E uma mãe como você, que ora bate por qualquer coisa, ora passa a mão
na cabeça por mal feito grave, não tem autoridade nenhuma. Só faz gerar raiva e
rejeição no garoto. No fim, vira uma relação de amor e ódio.
_ Eu sei que
não criei meu filho direito... Tive de deixar pelas casa dos outros. Mas o que
eu posso fazer agora?
- Por que não
deixa o menino morar com a avó, até como uma experiência para ele e para você?
_ Não vai
dar certo porque ela trabalha fora e só chega de noite. Quem fica em casa é a
tia que não tem paciência, xinga, bate e deixa solto na rua. Tem vezes que ele
vai dormir lá e volta na mesma hora, porque ela diz que a comida que tem é
pouca. Aí Ismael toma café e volta pra lá de novo.
_ Mas na
casa da avó e dessa tia tem algo de bom. Se não tivesse, ele não estaria
querendo deixar a irmã e a mãe para viver com elas.
_ Ele diz
que a avó beija ele, bota no colo...
_ E você?
Novo
silêncio.
Eu respiro
fundo, contemplo a guerreira negra (toda vestida de preto para ficar elegante)
e vejo a menina, que aos catorze anos, teve de virar mulher. Cenas de sua vida
passam em minha tela: vejo-a grávida desse menino, lavando roupa de ganho, comprando
os panos do enxoval na feira, estudando à luz de vela para conseguir o “diploma
do segundo grau”, sendo expulsa pela mãe ao engravidar novamente ou construindo
a casa de três cômodos com as próprias mãos, depois de muito brigar com os
vizinhos que dividiram, ao bel prazer, o terreno doado pela prefeitura. Vejo
também o menino. É um garoto bonito como a mãe, mas não traz o sorriso nem a
gentileza dela. Tem um ar rebelde e há raiva em seus olhos. Desde que o conheci, há alguns meses, não me
esqueço de sua cara bonita nem da ferocidade que vi em seus olhos. Aconselho a mãe a lhe pedir desculpas pela
surra. Digo-lhe que seja sincera, mostre arrependimento e explique que ficou
desesperada, que perdeu a cabeça de tanto medo que ele morresse. E não alegue
nada, não cobre, não critique, não fale mal do pai nem da tia. De novo, lhe
repito que as crianças rebeldes tem muita raiva e são as que mais precisam de
carinho, de compreensão e de amor.
Ela promete
que vai seguir meus conselhos e eu estou aguardando o feedback na segunda feira.
Enquanto isso, fico pensando com minhas teclas sobre o que teria ferido essa
criança. De repente, me lembro do que diz Clarice Lispector em sua famosa
crônica sobre Mineirinho. Ela fala de “uma coisa pura e cheia de desamparo; é
uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium,
essa coisa é um grão de vida que, se for pisado, se transforma em algo
ameaçador - em amor pisado”.
Amor pisado.
Penso que o brilho de aço que vi nos olhos desse garoto pode ser isso: amor
pisado. Mas, penso também que Ismael
ainda é tão menino e que o próprio movimento da vida, por si mesma, fará com
que a mãe reencontre o caminho da ternura para recuperar a confiança e o amor
desse filho.
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