quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Um principe em nossa casa


Ele tirava fotografias. Tinha uma câmera portátil moderna e bonita; não uma máquina com pernas de pau e uma tenda onde o fotógrafo enfiava a cabeça para bater a foto como seu José Retratista, o único fotografo que eu conhecia. Também não era velho como esse. Ele era jovem, diferente, parecia um príncipe.
Era tarde da noite quando ele chegou acompanhado da mulher. Explicou que seu carro havia quebrado perto de nossa fazenda e pediu  para passar a noite em nossa casa.
No outro dia, acordei cedinho e fiquei sabendo dos visitantes. Falaram que ele queria tirar uns retratos nossos. Há muito, eu conhecia de nome; heleno. Era filho de um rico fazendeiro da região – gente fina e viajada – havia morado na capital por muitos anos, onde fora estudar para ser doutor. Diziam que era muito inteligente e sabia muitas coisas sobre doenças e bactérias, porém não possuía o sonhado diploma de doutor. "Tinha ficado maluco de tanto estudar. Que pena! Coitado, um rapaz tão bonito e educado!" As pessoas comentavam isso em voz baixa, penalizadas. Heleno abandonara a faculdade, casara-se com uma moça da cidade grande e, agora, estava vivendo na roça com os pais. Diziam que não se interessava pela fazenda; passava o dia inteiro fotografando plantas, bois, passarinhos e até insetos; e, à noite, costumava se trancar num quarto escuro para fazer as revelações.
Assim que tomei um copo de leite cru na cozinha, corri para a sala de visitas, ansiosa para conhecer o fotógrafo amalucado. Será que era perigoso chegar perto dele? Avistei-o junto à janela ajeitando a máquina fotográfica. Fiquei no batente da porta, quietinha, observando-o... Desse homem, me ficou na memória, um retrato esmaecido que, agora, tento reproduzir com palavras.
O moço era alto e magro. Usava sapatos pretos lustrosos, calça verde-escuro e camisa branca de mangas compridas, com os punhos um pouco dobrados. Havia um quê de nobreza e de elegância em seu porte. Observei-lhe as mãos finas, os dedos compridos colocando as pilhas com habilidade. Na mão esquerda, a aliança bem larga e, na direita, um anel de ouro com uma pedra escura. Aproveitei sua concentração para lhe observar o rosto moreno-claro. Era um rosto belo, embora um pouco pálido, rosto de poeta romântico. Tinha nariz afilado, olhos claros sombreados pelos cílios compridos e sobrancelhas bem desenhadas, quase femininas; cabelo escuro e brilhante, penteado para trás, com uma mecha onde se destacavam prematuros fios brancos caindo-lhe na testa. O moço bonito exalava um cheiro bom de lavanda e de sabonete que denunciavam o banho recente. Banho de manhã cedo! Não parecia um louco, parecia um príncipe com aquele delicado perfil recortado na claridade da janela onde ele se encostara.
Heleno percebeu minha presença e se virou com a máquina apontada para mim. Por uma fração de segundos, vi-lhe um meio-sorriso e um brilho de curiosidade nos olhos esverdeados. Não lhe dei tempo de tirar a foto. Fugi, envergonhada, para a cozinha. Se ele tivesse batido a foto, talvez tivesse captado o meu "olhar de menina espiã" – assim definido por minha mãe – ao me reclamar por deixar as pessoas embaraçadas de tanto olhá-las com insistência.
Mais tarde,  me deixei fotografar com meus irmãos. Enquanto ele fotografava meus pais, o vaqueiro, os bois, os arredores e as outras crianças, a mulher ficava o tempo inteiro por perto cercando-o de cuidados. Não me lembro de sua fisionomia, mas guardo uma vaga recordação de que era alta e clara. Era ele quem me interessava. Seguia, com o olhar, sem perder nenhum de seus movimentos. Não sei se era maluco, sei que era triste, muito triste. Havia algo comovente em seu rosto pálido, em seus olhos indiferentes e até em sua elegância descuidada.
Nunca mais voltei a vê-lo ou soube notícias suas. Porém o retrato – em preto e branco – daquele belo príncipe desencantado, ficou guardado em meu baú da memória para sempre.

(março de 2006)

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