quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Uma crônica e meu comentario de leitura


CONGO


Tua alma, minha amiga, é como a Bélgica suavizada de canais, mas a minha é como o Congo violentado, duma liberdade malnascida. Miséria  misteriosa de meu sangue,  suor negro de minha morte, martírio milenar de minh’alma, meu amor. A Bélgica é como a tua alma suave. O Congo é tumulto impenetrável, floresta de lama, felino ferido. Estou ao Norte, ao Sul, a Leste, a Oeste, crucificado em províncias paralíticas, em subúrbios de barro, onde se arrastam bestas mal abatidas, mulambos de Lisala, senzalas de Lusambo, Usumbara profunda com seu zabumba fúnebre, Inongo, Malonga – minha’alma. Mas a tua é suave de canais. Um crime se articula na aldeia petrificada, um guerreiro de lança percorre o vale ardente. Mas em tua alma, minha amiga, há um príncipe melancólico pendido para o crepúsculo. No Congo, violência, vingança, o ídolo vestuto que se estraçalha, o pântano de sangue, o voo do corvo, o rio da raiva, a garra do belga, a madrugada de carvão, a cova de Cristo, a luz de Lumumba. Na Bélgica, a suavidade dos canais, meu amor.
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Paulo Mendes Campos em O amor acaba – crônicas líricas e existenciais.





Quero partilhar com vocês um relato de leitura que escrevi em 2007 quando fazia um curso de três dias sobre crônica. No segundo dia, folheei o livro de referência até o final e lá estava ela - a crônica de Paulo Mendes Campos,  - me esperando: CONGO.  Estranho nome... Entrei de coração aberto em seu território selvagem. Sua poesia "me pegou de jeito".  Li num fôlego só. Fiquei meio zonza. Tive um sentimento de estranheza e beleza. Meu coração batia forte tum-tum, tum-tum... O tempo inteiro uma parte de mim perguntava o que estaria acontecendo. Reli, falando baixinho aqueles "mês"... depois os "ans", "ons" e "uns"... Esses sons me pareciam um mantra. Ou seriam tambores? Batiam ali no texto? Ou seria na selva? “A garra do belga” me deu nova pista: o Congo fora colônia belga! Li outra vez. Minha parte que pergunta calou-se. Senti-me levada para uma selva escura e verdejante. Havia gorilas, guerreiros negros, sangue e lama... Vi também muitos homens loiros atirando com armas de fogo. Lá longe - separada pelo mar - uma terra recortada por canais. E ali estava ela: a mulher suave...
Busquei a análise do texto, ávida para testar minhas suposições. Outras surgiam. Então, eu, leitora mais preparada, observei as metáforas, as aliterações, os contrastes, a rede de significados... os sons surdos de tantos "vês" no final do texto.
Encerramos aquela aula com uma leitura dramatizada: eu - o Congo - fiz a voz fúnebre da zabumba; e a colega loirinha - a Bélgica - fez a voz suave dos canais... Só nos faltou um tambor...
Olha, se ao ler o texto, a poesia também "te pegar de jeito", sei que você compreenderá meu fascínio total por ele. Se ela não te pegar, é porque uma certa porta está fechada, e você - por alguma razão - não escutou o batuque dos tambores...



* Hoje, ao reler o texto, achei que a palavra CONGO reproduz duas batidas de tambor: CON-GO...CON-GO...




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